Amigo é para sempre

Amigo é pra sempre

Tanto se fala sobre amigos e amizades que supomos não haver mais nada a dizer sobre o tema. Mas quando o destina alcança um de seus verdadeiros amigos, aí tudo muda. Falo de amigo mesmo, desses cuja amizade perpassa décadas, vence barreiras geográficas e os mais variados problemas. Quando jovem eu acreditava ter muitos amigos e até cantarolei, com fé, o trecho da música manifestando meu desejo de ter um milhão de amigos.

Vamos vivendo e aprendendo. Com o correr do tempo, aprimoramos nossa capacidade de identificar amigos, a promover a necessária garimpagem que nos permite separar o cascalho do ouro, a colocar em seus devidos compartimentos as pessoas que são nossas conhecidas e as que são amigas. Que ninguém se iluda, amigos mesmo são pouquíssimos, raros. Poder ser contados nos dedos. Mas não se preocupe ou se decepcionado com isso. Quem desfruta de amizades verdadeiras, mesmo sendo poucas, deve se considerar uma pessoa de sorte, privilegiada.

Recentemente perdi um dos meus poucos amigos, um dos melhores e mais antigos amigos. Uma amizade iniciada quando ambos éramos bem jovens e trabalhávamos como datilógrafos em uma imobiliária, em Brasília. Datilografar com presteza foi o critério para sermos contratados. Aí, começamos a identificar traços em comum: livros, filmes, músicas, lugares. Sonhadores, achamos que poderíamos escrever um livro juntos. No início. depois do expediente, passamos a dar início ao sonho literário. Chegamos a identificar um tema, listar personagens e a definir ambiência e horizontes temporais. Ah. gostávamos de jogar cartas e assim, enquanto as ideias não baixavam, jogávamos partidas de canastras, contávamos casos, fazíamos sonhos de vencer na vida.

Mais tarde, ambos ingressamos na Universidade de Brasília. Formei-me em jornalismo e ele, em engenharia. Meu amigo, um empreendedor nato, abriu uma pequena lavanderia, na W-2, nos fundos de um famoso restaurante da época: O espanhol. A ideia dele era tocar a lavanderia como forma de sustento até se formar. Mas a força de trabalho, a seriedade com que fazia as coisas fez que o negócio prosperasse. Por isso, mesmo depois formado, mesmo atuando uns tempos paralelamente como engenheiro, consolidou a maior rede de lavanderias de Brasília.

O tempo foi passando, atividades diferenciadas profissionalmente, mas nossa amizade nunca foi relegada a segundo plano. Até mesmo em alguns períodos de afastamentos geográficos, continuou viva, solidificou-se ainda mais. Longos foram os anos em que, ao menos uma vez por semana, estávamos juntos. Além de costumeiros almoços, havia o jogo de sinuca, uma das principais diversões de meu amigo. Toda quinta à noite, era sagrado: o jogo de sinuca na casa de sinuca, com meu amigo e outros parceiros. O jogo era um pretexto para se estar juntos, conversar, exercitar o olhar no retrovisor do tempo.

Foram mais de 55 anos de amizade. Em nenhum momento uma desavença. Se nossas ideias sobre política ou algum outro assunto fossem divergentes, qual o problema? Colocávamos nossos pontos de vistas, ponderávamos e arrematávamos com lembranças, casos de amigos e de muitos conhecidos em comum. Como não rir de tantos casos engraçados ocorridos nos  tempos que fazíamos teatro amador?  Por anos e anos, deixei de ir a lançamento de livros, ver shows que gostaria de ver e tudo mais porque era noite de quinta à noite, a sinuca em primeiro lugar.

Há algumas semanas, em uma manhã de sábado, ele ligou para mim. Falou que estava preocupado com a saúde, mas bastante animado com as perspectivas colocadas pelo cardiologista dele, um dos melhores de Brasília. Acertamos para dezembro, quando eu regressaria a Brasília, encontros, almoços e, claro, várias rodadas de sinuca. Falamos de livros, de filmes, do Flamengo, dos conhecidos e de alguns amigos. Falei do que andava fazendo, escrevendo e rimos ao recordar daquele livro que escreveríamos a quatro mãos e que não passou da quinta página. Nem o título lembrávamos mais. Como imaginar que aquela seria nossa última conversa… Até porque meu amigo acreditava que ambos viveríamos tanto como nossos pais. O meu quase chegou aos 101. E o dele, aos 97.

Eu tive um amigo. Eu tenho um amigo, pois estes são para sempre, adquirem contornos de eternidades. Dou-me conta hoje  de que livro que escreveríamos à quatro mãos, na prática, foi escrito, em décadas, nas páginas de nossas trajetórias de vida. E que magnífica obra produziu meu amigo Marcial Pereira de Oliveira! Nunca parou de trabalhar, de sonhar e de melhor se colocar no mundo. De alguns anos para cá, lia ao menos cinco livros por mês. Lia também em inglês e espanhol. Em suas viagens ao exterior sempre trazia livros. Conheceu todos os países que sonhou conhecer. Mas jamais deixou de revisitar localidades de sua origem rural, no interior de Goiás.

Meu amigo sempre foi um batalhador incansável, um progrido sonhador, um leal amigo para com seus amigos. Quem conheceu o Marcial, tenho certeza, há de concordar comigo. Na verdade, recentemente não perdemos um amigo. E sim, nesta vida, ganhamos um amigo. E que amigo!

6 Respostas para “Amigo é para sempre

  1. Guido uma amizade assim, da valor a nossa existencial.Tenho alguns amigos desse quilate,, na verdade 6 amigos. Faço amigos, como vc diz com facilidade.Tenho amigos, sim.Mas não como estes,Todos eles com mais de 40 anos de amizade.
    Durante os dez anos de doença do meu marido,sobrevivi porque eles jamais me abandonaram.Vinham semanalmente jantar comigo e o entendiam mesmo que ele falasse so por gestos.Levavam-nos para almoçar nos recantos mais bonitos do Rio. O carro era deles, eles dirigiam.Quando fiquei viúva, continuamos e ate hoje nos encontramos toda semana aqui em casa .Falam dos filmes que eu não vi, comentamos livros e musica e a situação do pais.
    Jamais falamos de política porque, cada um pertence a um partido,Cada um pensa como quer : de esquerda, de direita,ou de centro….Daria briga….Somos de lugares muito diferentes e originários de tradições e concepções de vida que não e a mesma, as vezes antagonicas…, Nada que interfira em nossa amizade é permitido! Somos felizardos Guido! Ter amigo é um tesouro!
    .

    • Sim, um amigo mesmo, é um tesouro. Cultive suas amizades que se firmaram como tal. Como já disseram, quer ver quantos conhecidos tem? Dê uma festa. Quer saber quantos amigos tem? Esteja internado em um hospital. Mas o bom mesmo é desfrutar das amizades verdadeiras com alegria, saúde e humor.
      Valeram os comentários. Valeu a visita. Obrigado.

  2. Sinto muito pela perda do seu amigo de tão longa data e de tantas boas lembranças. Perdi duas amigas assim, uma você conhece, a Léa — minha amiga incondicional– e outra a Ikuka, que faleceu este ano. Vou ficando meio “capenga” sem elas ao meu lado (mesmo estando longe fisicamente). Mas tenho tantas boas lembranças delas que sempre estou revivendo a nossa amizade… Sonho com elas frequentemente e espero um dia reencontrá-las em outra dimensão.
    Meu sobrinho mexicano (por parte do Kiyoshi) diz que sou “amigueira”, ou seja fácil de fazer amizade. Talvez seja sim, mas amizade com A maiúsculo guardo para poucos! Para esses daria “uma perna e um braço”, como dizem os americanos, para não perdê-los! Amizade é a coisa mais preciosa de todas. E feliz quem tem amigos (não um milhão, mas uns poucos incondicionais)!
    ML

    • No caso da Léa, era nossa amiga comum. Nunca deixava de ligar no meu aniversário, sempre com os presentinhos, as lembranças, livros. Ainda ficou o amigo Mariozinho. Com diz a canção, amigo é pra se guardar no peito, dentro do coração.
      Valeu a visita, amiga!

  3. Pois é Ângela, poucas são as pessoas que quando vão, deixam um vazio tão grande. Em momentos assim, tendo recordar tantas aventuras, conversas, confidências e risadas desfrutadas em comum. A toda hora recordo-me da saudação inicial dele para comigo, de anos e anos: “Oi, Guidão!”. E eu sempre da mesma maneira: “E ai, Marci?”
    Mesmo sem bola de cristal, é bola pra frente, com o entusiasmo que o Marcial sempre teve, mesmo nos piores momentos. Somos melhores por ter convivido, independentemente do tempo de convivência, com ele.
    Obrigado pela visita, depoimento e lembranças.

  4. Guido, que beleza a amizade de vocês, sua crônica e principalmente o livro que “escreveram” juntos.
    Coisa rara amigos desse quilate.
    Pena que só o conheci há 3 anos. Tempo no qual também me encantei com ele.
    Era muito bom encontrá-lo, de manhã cedinho, no PEC, Ponto de Encontro Comunitário, onde trocávamos livros e ideias.
    Zizi marcou de nos encontrarmos lá na sexta-feira, mas ele foi sozinho. Nesse dia quase não falei, pois ainda não havia me recuperado do recente falecimento de um dos meus irmãos.
    Falamos de problemas de coração, perguntei pela perna dele, pois andava se queixando de dores. Depois li que a dor na perna é um dos sintomas de que a pessoa terá um enfarte!
    Ele me deu um abraço pelo falecimento do meu irmão e eu sem saber que aquele seria o último!
    No sábado, ele foi para o hospital! Como faz falta uma bola de cristal…
    Muuito triste!
    Um abraço.

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