O dia em que a cobra fumou

O DIA EM QUE A COBRA FUMOU

Faz alguns anos que o caso aconteceu. Lembrei-me disso ontem e, apesar do tempo decorrido, ri sozinho como se tudo tivesse acontecido de novo, do mesmo jeitinho como tudo aconteceu.

Ele morava por perto, pois sempre o avistava em locais como padaria, casa lotérica ou o mercadinho da quadra. Nunca fiquei sabendo ao certo o nome dele, mas sabia que havia vindo do Rio para Brasília nos primeiros anos da então Nova Capital. Portanto, o chamarei simplesmente de Carioca.

Diziam que tinha mais de oitenta, mas a aparência do Carioca era de alguém com bem menos idade. Ele se cuidava, fazia caminhadas diárias, além de integrar um grupo de moradores da vizinhança que, ao menos duas vezes por semana, praticavam tai chi chuan, uma atividade para os mais bem vividos. Jamais conversei com ele. No máximo, acenos formais ao cruzarmos em algum lugar, sem palavras, como se desejássemos mutuamente um bom dia ou quiséssemos dizer um olá ao outro.

Lembro-me bem que um acaso fez com que ficássemos bem próximos um do outro. Era uma tarde de domingo e eu havia me juntado a uns amigos em um bar próximo. Ali, diante de um telão, iríamos assistirmos ao jogo do nosso time, que precisava muito vencer. Naquele recinto, a maioria dos frequentadores vestia a camisa  do mesmo time. Grande era a expectativa e, claro, o consumo de bebidas.

Sobre a nossa mesa, mesmo antes do início da partida, o número de garrafas de cerveja já vazias ganhava de goleada.  Eis que noto que, na mesa ao lado, com mais dois amigos da mesma faixa etária, estava o Carioca. Diferentemente da nossa mesa, lá estavam duas jarras: uma com água de coco e a outra com suco de laranja. E os três amigos bebericavam seus saudáveis líquidos com moderação, como se aquelas jarras tivessem que durar até o final da partida.

Mal a partida começou e o meu amigo Laurindo acendeu o primeiro cigarro. Era um bar que contava com uma área externa onde se podia fumar. Mesmo assim, vi que o senhor Carioca, no mesmo momento que fora alcançado por uma lufada da fumaça do cigarro, passou a fingir que tossia, abanando uma das mãos como se tentasse afastar do rosto o ar poluído que vinha da nossa mesa. O Laurindo não notava isso pois estava de costa, sem imaginar que seu braço esticado para trás, afastava a fumaça do seu cigarro da nossa mesa, mas alcançava diretamente o Carioca e seus amigos.

O Carioca, em meio à fumaceira do cigarro, não se aguentou. E passou a reclamar em voz alta de que aquilo era um absurdo. Onde já se viu, fumar sem se preocupar com os demais frequentadores do bar. E mais alto ainda, quase gritando, avisou que detestava gente sem consideração, sem um pingo de respeito e educação. O Carioca estava mesmo fulo da vida.

Certamente pelas cervejas na cuca e por saber que estava em uma área liberada para fumantes, o Laurindo, virando o rosto para trás,  esbravejou que o ditado era claro: os incomodados que se mudem. Pra quê! O tal Carioca, certamente estar em um daqueles dias que nada dá certo, levantou-se de sua mesa de um só pulo e, parando ao lado de Laurindo, de punhos em riste, gritou:

– Hoje a cobra vai fumar!

Minha reação espontânea e instantânea foi a e soltar uma estrondosa gargalhada. O riso funcionou como um soco, creio. Já que o tal senhor, o Laurindo, todos os demais que estavam por perto passaram a me olhar, intrigados devido à minha forte e estardalhada gargalhada. Li interrogações em cada olhar, em todos os rostos. O que me levara a rir assim, tão despudoradamente com o jogo do nosso time  já em andamento? Senti-me na obrigação de justificar.

– É que a fumaça do cigarro do meu amigo Laurindo incomodava este senhor aqui, e quando, pronto para iniciar uma briga, ele anunciou que a cobra ia fumar, não consegui segurar o riso. Afinal, a briga era justamente por causa do cigarro.

Aí o Carioca pegou a deixa e esclareceu que, como não fumante, ele e os amigos estavam sendo prejudicados. E, indo além, lembrou que o ditado “A cobra vai fumar” era comum no tempo dele, principalmente no Rio de Janeiro. E, como expedicionário que lutara na Itália, tinha ainda viva a imagem dos aviões da FEB com tal frase escrita no bico, com a imagem de uma cobra fumando. Disse que o ditado surgiu porque, com a possibilidade do país participar da II Guerra Mundial, o povo dizia que era mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil participar da guerra.

O Carioca, ainda em pé, sem saber se brigava ou não. O Laurindo já de cigarro apagado no resto da cerveja do seu copo. Dois garçons já a postos, para o caso de terem que separar os brigões. Enfim, todos na expectativa, esperando por um desfecho qualquer que fosse ele.

Eis que se grita gol. E todos se levantam de suas cadeiras, e pulam e se abraçam em comemoração. Uma alegria só tomando conta de todos. Uma euforia no ar. Não é que o Lurindo e o Carioca se parabenizavam como se velhos amigos fossem? E reviam, lado a lado, como torcedores do mesmo time, o belo gol que era reprisado  em câmara lenta,  telão. Se um fumava e o outro não. Se um fazia tai chi chuan e o outro gostava de jogar dominós, pouca importância tinha isso naquele momento. Ambos torciam pelo mesmo time. O melhor time do mundo!

Naquele dia anotei mentalmente mais uma lição de vida: que força tem uma gargalhada, quão poderoso é um gol do time pelo qual se torce. Disfarcei e avisei que ia ao banheiro. Às vezes fico emotivo demais. E se alguma lágrima inesperada – como fora minha gargalhada momentos antes – brotasse no canto de meu olho? E se me xingassem de chorão, bebezão? Aí sim, a cobra iria fumar.

2 Respostas para “O dia em que a cobra fumou

  1. Torcedores sempre torcem por seus times, fanaticamente as vezes.Alguns membros de minha família são Corinthians. Conviver com Corintiano é como conviver com flamenguista. Na família , em São Paulo convivo com alguns corintianos. Meu sobrinho , cujo pai é Santista, era em criança e na adolescência tão fanático, que tinha a camisa, o tenis, a colcha da cama , a bandeira do time, Quando o time ganhava, enrolava-se na bandeira, e saia a cantar pela casa o hino do Corinthians , aos berros.Tinha que extravasar a alegria….era so comparável ao fanatismo de um dos namorados de minha filha , que não perdia jogo do Fla no Maracanã. Ficava tão louco da vida com as falhas do time, que xingava, de palavrões, os mais cabeludos, o jogador faltoso.Isso Junto com a mãe, que também era fanática pelo time.
    É … torcedor só é comparável, aos que torcem pela escola de samba de sua preferencia…

  2. Sempre achei que a fidelidade dos torcedores por seu time os irmanam e acabam com os possíveis preconceitos que tenham uns dos outros. O time do seu coração fala mais alto que qualquer nacionalidade, bairrismo, idiossincrasias. Todos unidos pelo amor à camisa seja ela qual for. Interessante isso. ML

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