Para ouvir a surdez de Beethoven

Para ouvir a surdez de Beethoven

Para que olhar para o céu se tiver em você as estrelas de todas as galáxias? Imagino que em algum momento de sua existência após os 46 anos de vida – quando quase que totalmente surdo – Beethoven tenha tido um pensamento semelhante, e que esta conclusão tenha sido estímulo que o salvou da desesperada ideia de suicídio e de se deixar arrastar, irremediavelmente, para o abismo da depressão. Imagino que até àquela idade ele já reunira em si todos os sons do mundo, incluindo os da terra, do mar e do céu. Ludwing van Beethoven já havia guardado em sua memória todas as possibilidades musicais da somatória ou harmonização de todos os instrumentos musicais e das variações sonoras de todas as vozes. Certamente quando a surdez o alcançou, o grande compositor havia já armazenado em sua alma os acordes necessários para construir centenas de sinfonias. Não precisava mais ouvir o mundo mas, a partir dali, o mundo é que precisaria ouvi-lo.
No meio da noite, entre um sono interrompido e um sonho surgindo, eis-me ouvindo no silêncio da madrugada a nova Sinfonia de Beethoven, como se estivesse presente à primeira apresentação, ocorrida há quase 190 anos. Naquele 7 de maio de 1824, com a presença do compositor, foi apresentada a que seria sua última sinfonia e a primeira a incluir vozes humanas, em um coral. Os principais acordes estavam em mim, eu conseguia ouvir e sentir toda a felicidade possível dessa audição. “Alegremente, como seus sóis voem, através do esplêndido espaço celeste/se expressem, irmãos, em seus caminhos, alegremente como o herói diante da vitória.” Veja o trecho de um filme que retrata esse momento: http://www.youtube.com/watch?v=e9cno71jklc
Ainda moço e morando na cidade na qual nascera – Bonn, Alemanha – Ludwing já se desafiava a apresentar, musicalmente, os versos da Ode à Alegria, de Friedrich Schiller. Este sonho seguiu com Beethoven para Viena, para onde se o promissor músico se mudou e passou a viver a partir de seus 22 anos. O sonho se transformou em desafio de vida, em uma espécie de compromisso: o de não morrer sem conseguir dar forma musical aos versos de Schiller. O impulso necessário veio em 1818, quando recebeu a encomenda da Royal Philharmonic Society de Londres para compor uma sinfonia. Aos 48 anos, há dois quase que totalmente surdo, Beethoven iria conciliar seu sonho com uma demanda, iria descobrir caminhos entre o desespero e a esperança e seguir trabalhando, sem imaginar que, muitas décadas depois, sua IX Sinfonia iria ser escolhida como hino de todos os países daquela Europa que se uniria.
Em algum dia e momento de 1824, a tristeza de Beethoven é substituída por uma súbita e intensa alegria. Ele havia, por fim, encontrado a solução musical que buscava há 32 anos. Agora, em uma sinfonia ele poderia apresentar musicalmente o texto poético da Ode à Alegria. Três anos após o feito, logo entusiasticamente recebida pelo público, Ludwing van Beethoven deixaria este mundo. Ele havia concluído positivamente sua vida terrestre, deixando para a humanidade uma significativa e eterna obra musical. Os milhares que foram a seu funeral certamente devem ter entoado os versos de Schiller: “Abracem-se milhões! Irmãos, além do céu estrelado deve morar um Pai Amado.”
A morte serviu de libertação para quem se considerava há anos prisioneiro das circunstâncias, afinal o próprio Beethoven já havia manifestado sua angústia por escrito: “Mas que humilhação quando ao meu lado alguém percebia o som longínquo de uma flauta e eu nada ouvia! Ou escutava o canto de um pastor e eu nada escutava! Esses incidentes levaram-me quase ao desespero e pouco faltou para que, por minhas próprias mãos, eu pusesse fim à minha existência. Só a arte me amparou!”
Exercite ouvir sinfonias em silêncio, desfrutar de apresentações musicais que ocorrem no palco de sua alma, no teatro de sua memória. Como ter em si as imagens que poderia, de uma hora para outra não ver mais. Assim como os perfumes que identifica, os sons que ouve e o gosto que sente. Experimente avaliar o estoque de suas percepções internas, já vividas e consolidadas em você. Que músicas estariam armazenadas? De modinhas populares às sinfonias, dos cantos dos pássaros aos cânticos gregorianos. Faça essa avaliação e saberá o quão rico você é.

As reinações e piscadelas de Lobato

As reinações e piscadelas de Lobato

Dia 18 de abril, dia que se comemora o nascimento de Monteiro Lobato em 1822. No último dia 18, eu em uma escola da Ceilândia, falando de livros no Dia do Livro Infantil. Citando Lobato e Mário Quintana, dois brasileiros cujas histórias de vida estão intimamente ligadas ao livro. Tarde quente, auditório lotado de crianças, jovens, pais, professores. No calor da tarde se tentava aquecer lembranças de José Bento Renato Monteiro Lobato, um caipira que falava inglês, um homem do sítio que morou em Nova Iorque, um escritor que lia muito, antes de tudo.
Não vou cair na tentação de falar mesmices sobre Lobato. Nem discutir se ele foi mais um adaptador do que tradutor. Sei que graças às traduções dele muitos puderam ler, em português, os contos dos irmãos Grimm, histórias do Anderson e acompanhar as aventuras de Alice no País da Maravilha. É vasta a lista das traduções de Monteiro Lobato, não só de literatura infantil e juvenil.
Lobato foi um homem de negócios e foi um marco para o país sua louvável sua iniciativa de criar uma editora no Brasil em um tempo que a maioria dos nossos livros era editada em Paris ou Lisboa. Esse Lobato fez de tudo, canalizando sua criatividade e ousadia para realizações. Ideias são ideias e nada são sem o passo seguinte, o do fazer. Errando e acertando, Monteiro Lobato deveria ser conhecido também como o homem que fazia. Tanto fez que foi nomeado adido comercial em Nova Iorque, em 1926, ficando cinco anos no cargo. Tempo em que estreitou sua ligação com a língua inglesa e ficou conhecendo obras de vários escritores que por ele seriam traduzidas.
Contrariando o governo de Getúlio Vargas, e interesses de empresas pegtrolíferas estrangeiras, foi o primeiro a acreditar que o Brasil poderia produzir petróleo. Por essas ideias foi ridicularizado e até preso. Esse Lobato era da labuta, um cara batuta, persistente. Vivenciou a falência em empreendimentos agrícolas, como a fazenda que herdou do avô e também no mercado editorial. Quando morava nos Estados Unidos, justamente no negro período de l929, perdeu muito em investimento em ações. Mas toda a queda em seus negócios serviam de marco para uma nova era. Levantava-se, sacudia a poeira e dava a volta por cima.
Lobato foi poeta e, em literatura, difícil achar um gênero que não tenha feito algo ou tentado. Lobato foi um filósofo também. Seu texto sobre a vida, em diálogo com o personagem Visconde, é mensagem que se devia ler periodicamente: “A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais […] A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre. – E depois que morre?, perguntou o Visconde. – Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?”
Monteiro Lobato virou uma memorável hipótese. Mas suas realizações e ideias estão aí, são concretas e palpáveis. Estão aí tantos livros escritos, traduzidos ou adaptados por ele. A produção de petróleo do Brasil, seja em terra ou em mar, está aí para provar que muitos sonhos merecem uma boa e persistente luta. Os personagens do Sítio do Picapau Amarelo, mesmo com a multiplicidade de heróis de quadrinhos e de séries de desenhos animados de televisão, continuam vivos e presentes no imaginário de todos.
O meu amigo, ilustrador de alguns livros meus, Jô Oliveira, avisaria logo para não me esquecer de que Monteiro Lobato também foi ilustrador e que se formou em Direito para satisfazer o pai, mas queria cursar Belas Artes, ser um artista do traço, um pintor famoso. Mas sabemos que pintou em palavras um mundo encantado, povoou-o com personagens que, por suas características e maneira de viver, ganharam vida própria e têm ares de eternos.
Neste 2013, neste último dia 18 de abril, ao sair da escola visitada, ao ver crianças e professores acenando um até breve, imaginei Monteiro Lobato hoje, conversando com crianças, adolescentes e professores, arrematando que um país se faz com homens e livros. Principalmente com homens do porte dele.

Ensaio sobre a cegueira do amor

Ensaio sobre a cegueira do amor

Dizem que o amor é cego e alguns mais exagerados afirmam que além de cego o amor é meio surdo, sofre de gagueira e está quase sempre com o nariz entupido. Sabemos que a expressão se origina no fato da pessoa que está apaixonada só ver o belo, o positivo, o atrativo no ser amado. Ou seja, o amor não é cego, mas afoitamente seletivo no que enxerga. Já foi dito que o amor torna idiota o mais sábios dos homens. Por outro lado, não amar é uma idiotice completa. Mesmo com toda a cegueira do amor, nesse jogo de emoções eu sempre coloco todas as fichas nele, intransitivamente.
Se o amor é cego, humoristicamente eu poderia afirmar que o casamento é remédio eficaz que restitui a visão ao apaixonado. Não, por favor, esta não é uma frase machista, de maneira alguma. O medicamento serve para cada um dos pares, homem, mulher, independentemente de sua orientação sexual. Diria que o casamento, na maioria dos casos, funciona como um remédio homeopático e,se o amor é forte e verdadeiro, a luz aos olhos só volta quando a cegueira da idade já alcança o indivíduo. Aí, por cômodas circunstâncias, o amor permanece belamente cego. Não sou categórico nem tão radical em minhas afirmações sobre a cegueira do amor. Sei bem que, como tudo na vida, há sempre exceções, ainda que raras. Não nego que há casos reais de amores eternos enquanto dure. E que sejam muitos e que durem tanto o amor de Romeu por Julieta e desta por ele.
Se por um lado o amor é cego, como pode um cego ter amor à primeira vista? Perdão, o politicamente correto é questionar se as pessoas portadoras de deficiências visuais podem vivenciar a possibilidade do amor à primeira vista. Esta é uma questão melindrosa, que exige ser tratada com muito tato, contato. Exercitando minha filosofia barata, genérica, afirmo acreditar que os casais com deficientes visuais praticam um amor bem mais verdadeiro, fundado mais em companheirismo, cumplicidades, afeições espontâneas. Elas mantém um relacionamento no qual favorece se enxergar a beleza interior do. Aliás, Charles Chaplin tratou desse tema no filme “Luzes da ribalta”, quando o personagem Carlitos se apaixona por uma florista cega e se sacrifica solidariamente para que ela recupere a visão.
No jogo de sedução tem papel importante a cegueira do amor. Para um pé torto há sempre um chinelo velho. As imperfeições de cada um se anulam quando ambos estão apaixonados, tornando gêmeas e felizes essas almas. Mais longa será a felicidade desse casal quanto puderem manter a cegueira desse amor, cujo milagre maior é levar cada um a enxergar no outro só os aspectos belos, sublimes, principalmente as do espírito. O essencial é visível apenas aos olhos da alma.
Ninguém, em momento algum da vida, está a salvo em relação à cegueira do amor. Quer melhor exemplo do que o do escritor José Saramago? Aos 63 anos conheceu, por esses acasos do destino, Pilar del Rio, 28 anos mais jovem e que foi sua companheira até o final da vida do escritor. Ele já havia dito o amor não tem idade: “Aprendi que o sentimento do amor não é mais nem menos forte conforme as idades, o amor é uma possibilidade de uma vida inteira, e se acontece, há que recebê-lo.” E ele soube enxergar a beleza e as múltiplas possibilidades da cegueira do amor. O amor de Saramago por Pilar foi manifestado de maneira exemplar quando declarou à mulher que amava:“Se eu tivesse morrido aos 63 anos antes de lhe ter conhecido, morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora”.
A cegueira do amor não se aplica apenas às questões do coração. Ocorreu-me terminar este pequeno ensaio com o caso do famoso – e atualmente pouco conhecido – cego Aderaldo, repentista cearense, um dos mais criativos e competentes segundo os estudiosos do cordel. Aderaldo Ferreira de Araújo nasceu na cidade de Crato, ficando cego em um acidente. Contava ele que uma vez teve um sonho em versos e aí, apaixonou-se cegamente pelas rimas, pelo versejar improvisado no qual espantava a todos com sua lucidez e agilidade de raciocínio. É um dos mais belos exemplos de desafios de repentistas a peleja do cego Aderaldo com o Zé Pretinho, do Piauí. Recomendo ler sobre o referido embate da poesia popular cordelista. Pois bem, o cego Aderaldo nunca se casou, nunca foi alcançado pela cegueira do amor por outra pessoa. No entanto, foi pai e criou 24 filhos adotivos.
Que visão de amor!

Equilibrando-se na linha do tempo

Equilibrando-se na linha do tempo

Hoje tirei um tempo para falar sobre o próprio tempo, sem previsões meteorológicas e sem me preocupar com o tempo que gastarei ou a que conjecturas absurdas o tema pode levar. Parto para essa viagem com a coragem naif dos inconsequentes, com a pureza de espírito dos loucos que dormem nas ruas e acordam nas estrelas. O tempo e seu caminhar significam vida. Ou seria o tempo o trecho de caminho que cada um tem para percorrer? Só o tempo sabe a resposta.
Quando o viver tem como trilha sonora o silêncio do dos relógios digitais é quando, justamente as angústias podem ganhar corpo, delimitar espaços na mente e apossar-se da alma. Não há antídotos contra o tempo, por isso é melhor tornar-se seu aliado, fazer dele amigo íntimo de todas as horas, seja o relógio de sol, analógico ou digital. Independente da tecnologia, o tempo não muda sua maneira de ser, ou de nos permitir ser enquanto caminhantes, transeuntes. E estampa em nosso rosto o seu passar cadenciado, percebido lento em alguns momentos e, contraditoriamente, em velocidade alucinante.
Hoje tirei um tempo para o tempo, nem homenagem nem lamento, apenas falares de amigo. Ele tem sido generoso para comigo. Quando achei que não tinha tempo para fazer alguma coisa é porque essa alguma coisa, na verdade, era coisa alguma. Ao mesmo tempo, quando capturei a emoção transmita por uma frase a esmo, saboreei décadas em segundos. E isso conta para mim. Já disseram que a dimensão do tempo é bem outra para quem cumpre pena em uma prisão para quem se extasia com uma sinfonia ao perceber os últimos acordes. O tempo nunca tem fim, mas cada um sabe do fim de seu trajeto, percebe que alcançou o pico de sua escalada. Aí, como no final da poesia Funeral blues, do W. H. Auden, é concluir que: “As estrelas já não são precisas: levem-nas uma a uma; desmantelem o sol e empacotem a lua; despejem o oceano e varram a floresta; porque agora já nada de bom me resta.”
Sou um amante da vida e dela me nutro. Alimento-me de minutos e engulo homeopaticamente o tempo que me devora, em uma perfeita simbiose metafísica. Não fazendo disso uma batalha, um jogo de perde-e-ganha. Mas um encontro ao qual o gozo maior está em estar presente, como se respondia à chamada nos tempos de aluno do primário, levantando o braço e gritando: presente! Procurei sempre estar presente à chamada do tempo. Com alguns atrasos, sem o rigor dos prazos, mas sem fugir à luta diária, diuturna, contínua. Atravessei todas as fases da lua e sobrevivi a todas as tempestades solares. Por isso posso falar do tempo com a mesma serenidade usada por Mário Quintana quando disse que: “A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.”
O meu dia resulta da mesma dimensão de horas vividas por reis e rainhas, por andarilhos e ocupados executivos de multinacionais. Mas faço de cada dia um tempo de renascer, crescer e findar. Vivo os dias de minha vida e dou vida a meus dias, sentindo-me artesão que tece o tapete de seu viver segundo os fios que consegue. O segredo é fugir da colcha de retalhos e a meta é produzir o mais perfeito tapete já feito. É o que faço ou finjo – ou minto – fazer. Não é bem levar a vida na flauta, mas procurar produzir melodias, deixar acordes no ar.
Todos os humanos, independente de idade, credo, filosofia de vida, é levado constantemente a pensar no tempo. Uns para melhor vivê-lo, outros perdendo tempo em tentar pará-lo ou querendo retardar os seus passos. Aceite o tempo como ele é, a seu tempo. Que sábias palavras proferiu o saudoso Mário Lago ao dizer: “Fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo: Nem ele me persegue, nem eu fujo dele, um dia a gente se encontra.”. Outra conclusão com a qual concordo é a de Caetano Veloso na música Oração ao tempo, no trecho que diz: “E quando eu tiver saído/Para fora do teu círculo/Tempo tempo tempo tempo/Não serei nem terás sido/Tempo tempo tempo tempo…”